Rituais extremos: qual o papel social da violência em determinados eventos culturais?
Pouco aceitas na cultura ocidental, automutilações, queimaduras e outros atos extremos são ritos naturalizados em rituais de diversas sociedades
D'Or Institute for Research and Education
Publicado no periódico científico Religion, Brain & Behavior, um estudo liderado pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) avaliou e mapeou as percepções de mais mil espectadores participantes do Festival dos Nove Deuses Imperadores, uma celebração que reúne cerca de um milhão de pessoas em diversos países da Ásia e possui cunho predominantemente religioso, sendo naturalizada nesses eventos a violência autoinfligida por uma parcela pequena de seus participantes. O objetivo da pesquisa foi mapear a reação dos espectadores que assistem a esses rituais, buscando entender os efeitos sociais do evento cultural.
Antes de torcer o nariz para ideias que não são normalizadas em nossa cultura, é importante lembrar que, independentemente de crenças ou religião, os rituais fazem parte de nossas vidas. Ações como decorar a casa com luzes no Natal, vestir roupas brancas na virada do ano, ou ocupar as ruas no Carnaval, são atitudes que nos inserem na identidade local e servem como meio de agregar comunidades.
Os rituais coletivos estão presentes em todas as sociedades humanas, e embora sejam muito diferentes entre si, eles possuem funções sociais comuns à maioria das comunidades. Segundo os psicólogos que lideraram a pesquisa, as três principais funções de um ritual são: o aumento da conexão social, a regulação emocional dos participantes e a modulação de tradições e comportamentos, que serão repetidos geração a geração.
Sabendo dessa premissa, os cientistas quiseram entender de forma mais aprofundada a maneira pela qual os indivíduos percebem esses rituais e como essas percepções estão conectadas entre si, principalmente em ritos que evocam emoções intensas, como ocorre em culturas onde é naturalizada a exposição a práticas violentas.
Festival dos Nove Deuses Imperadores
Como ponto de partida da pesquisa, os pesquisadores participaram do Festival dos Nove Deuses Imperadores, uma celebração milenar que ocorre no nono mês do calendário chinês, sendo comemorada em vários países asiáticos como Tailândia, Indonésia, Malásia e na própria China.
O evento é marcado por procissões, oferendas, jejuns e orações religiosas, mas também inclui rituais de automutilação extremos, que são praticados por uma pequena parcela dos participantes como uma forma de purificação, devoção e até de incorporação de divindades. Esses atos variam desde caminhar em brasas até sangramentos e perfurações, e são observados por espectadores que podem pedir ao mártir bençãos e predições.
A exposição a cenas extremas nesse festival despertou a curiosidade dos autores sobre seus efeitos nos espectadores e sua contribuição para as funções sociais do ritual em si. Em 2015, eles coletaram informações de mais de 1.000 espectadores do festival, incluindo homens e mulheres de diferentes classes sociais. Eles avaliaram as respostas em diferentes espectros, que levavam em consideração a identidade cultural dos participantes durante o evento, assim como respostas emocionais e percepções pessoais de fé e crenças religiosas relacionadas ao ritual.
Entendendo sentimentos humanos durante rituais extremos
Para encontrar nessas milhares de respostas uma padronagem que melhor transmitisse os efeitos e impressões desse fenômeno social, os cientistas realizaram uma abordagem de rede psicométrica. Nessa técnica, as respostas individuais foram agrupadas em 5 núcleos que as dividiam em emoções negativas, positivas, sentimentos de ambiguidade, conexão social e uma segmentação relacionada a ações próprias do ritual, como orações e interação com as divindades.
A intenção dessa metodologia é compreender as relações entre as próprias variáveis, um caminho que difere de outros estudos com uso de questionários, pois não supõe justificativas ou causalidades para as respostas fornecidas pelos indivíduos no teste. Colocar a ênfase em como as respostas interagem entre si permite aos pesquisadores identificar influências multifatoriais, além de perceber relações mais compatíveis com a psicologia humana, que não se resume a causas e efeitos, e sim a uma rede interconectada de fatores.
Os sentimentos que conectaram de forma mais relevante as variáveis do mapa foram a felicidade, o medo e a fé de que as divindades buscam o bem-estar dos seus súditos e possuem poderes sobrenaturais. Isso significa que no ritual os componentes centrais identificados nos participantes estavam ligados a respostas emocionais e fortes crenças espirituais.
No festival, a conexão mais evidente entre as variáveis foi a crença religiosa, que segundo os autores é um fenômeno que atua como um forte antecedente cultural, e que torna o mundo compreensível para um determinado grupo de indivíduos. Contudo, as principais reações emocionais positivas relatadas pelos participantes estavam intimamente ligadas à conexão social durante o evento, destacando o papel do afeto para o fortalecimento do vínculo social na comunidade.
O sentimento relatado de medo, relacionado ao temor pelo poder das divindades, também foi uma variável relevante no estudo, mas não foi o suficiente para trazer uma conclusão sobre o suposto papel diferencial que os ritos extremos, como as automutilações, podem exercer em rituais coletivos. Os autores supõem que essas exibições de grande provação criam memórias de impacto, onde as reações negativas ajudariam a impulsionar inicialmente os processos de memória, mas que com o tempo essas memórias negativas seriam sobrepostas pelos sentimentos positivos também evocados pelo ritual. Eles ressaltam, contudo, que essas dinâmicas emocionais ainda necessitam de maior aprofundamento em pesquisas futuras.
Rituais extremos no Brasil
O Dr. Ronald Fischer, psicólogo pesquisador do IDOR e primeiro autor do estudo, ressalta que os rituais extremos não são exclusivos de longínquas culturas orientais. Ele menciona que, aqui mesmo na Amazônia brasileira, os originários Sateré-Mawé realizam o até hoje o ritual Wyamat, ou a “Festa da Tocandira”, um ritual de passagem em que jovens nativos se tornam homens guerreiros.
A formiga tocandira, também chamada de tucandeira ou formiga-cabo-verde, é dona de uma das picadas mais dolorosas da espécie, sendo comparada a vespas por sua potente toxina, que pode causar sintomas como febre e náuseas. No Wyamat, os jovens homens Sateré-Mawé devem enluvar as mãos repetidas vezes com um artefato de palha que contém dezenas dessas formigas para serem reconhecidos como verdadeiros guerreiros em seu clã. E tem um detalhe: se o “debutante” chorar, ele falha no ritual.
“Não precisamos ir para sociedades distantes da nossa para identificar rituais extremos. Quando pensamos em alguns torcedores de futebol que acompanham seus times em diversos estados, muitas vezes eles precisam fazer rituais sacrificantes como viajar longas distâncias, gastar muito dinheiro, dormir em acampamentos e preterir outras atividades importantes para estar ali, dando suporte ao time”, ilustra o Dr. Ronald Fischer.
Emoções são parte importante dos rituais
O estudo sobre o Festival dos Nove Deuses Imperadores foi o primeiro a relatar uma ampla exploração das reações dos espectadores em um dos maiores e mais extremos rituais da atualidade. A rede de mapeamento encontrada pelos autores reitera outras teorias utilizadas pela abordagem de rede psicométrica, o que contribui para o corpo científico da área.
Os pesquisadores também destacam o papel da emoção positiva durante o festival, que está presente durante todo o evento e atua na agregação social dos participantes. Esse contexto comprova a importância de considerar os sistemas de significado culturalmente construídos ao examinar as reações emocionais durante qualquer ritual, ainda que seus costumes possam parecer disfóricos para culturas diferentes, como é o nosso caso no Ocidente.
Psicologia dos números
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Se por acaso você imaginava que a psicologia se limitava ao atendimento de pacientes e promoção da saúde mental, esse estudo é um grande exemplo da versatilidade e amplitude da área.
A psicometria é uma área da psicologia intimamente ligada às ciências exatas. Ela se concentra na quantificação de características da mente humana de forma que possam ser estudadas, comparadas e compreendidas de maneira mais objetiva e sistemática. Possuindo diversas linhas metodológicas, um dos seus focos é entregar dados de grupos sem desconsiderar a complexidade e subjetividade da mente humana.
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