Eugenia Chiappe, Investigadora Principal do Laboratório de Integração Sensório-Motora do Centro Champalimaud, está de pé no seu gabinete. A cerca de três metros de distância, há uma porta e o chão é plano e claro. Eugenia, que pretende caminhar em linha reta até a porta, leva um segundo para medir a distância. Fecha os olhos, dá quatro passos em frente e esbarra numa cadeira à sua direita.
Esta pode não ser uma situação surpreendente. Pode parecer muito óbvio que a visão esteja ligada à capacidade de nos movermos com eficácia, logo se estamos com os olhos fechados a tentar andar numa linha reta é óbvio que estar se torna uma tarefa. Mas qual a razão para isto acontecer? Estes são movimentos que aperfeiçoamos ao longo de muitos anos, e ainda assim, dar uns curtos passos sem a visão revela-se um verdadeiro desafio. No estudo publicado hoje (8 de Setembro 2021), na revista científica Current Biology, investigadores mostram como o controlo visual afeta a locomoção das moscas.
A conexão cérebro-corpo-olho
Este artigo, resultado da investigação realizada durante a tese de doutoramento de Tomás Cruz, examina as inúmeras formas de estabilização da locomoção e como estas são afetadas pela visão. Esta investigação é baseada em estudos realizados na Drosophila melanogaster (mosca-da-fruta), sendo que tanto o Tomás, como a Eugenia, acreditam que os resultados podem ser transponíveis a animais com cérebros maiores, incluindo os humanos.
Esta investigação desafia um modelo amplamente aceite pela comunidade científica sobre como a visão influencia a locomoção. Eugenia Chiappe explica: “O modelo aceite é aquele que defende as chamadas rotações compensatórias reativas, seja através da coordenação cabeça-corpo ou diretamente nas rotações do corpo. O que descobrimos agora é que este não é o caso. O que a visão faz para manter a estabilidade do olhar é influenciar os movimentos do corpo, ajustando as posturas como uma medida preventiva. ”
Por outras palavras, os cientistas acreditavam que o feedback visual gerava rotações reativas: assim que um indivíduo se desvia do curso, a visão dispararia uma rotação compensatória. No entanto, este novo estudo sugere que essas rotações acontecem demasiado rapidamente para que seja este o caso. O que estes novos dados mostram é que as rotações funcionam para evitar movimentos errôneos, e não como uma reação a estes.
Tomás Cruz acredita que a verdadeira novidade das descobertas é exatamente esta: “o efeito da visão deve ocorrer muito mais perto do controlo do membro do que anteriormente se pensava, no equivalente da medula espinhal na mosca”. Eugenia continua, “O que o Tomás está a mostrar é que, inevitavelmente, quando não há visão, os sistemas de controlo de membros estão a responder a perturbações de equilíbrio e de postura. Considerando que, quando a visão está disponível, o objetivo comportamental de andar em linha reta tem precedência sobre os pequenos ajustes posturais.”
Sem visão, o corpo continua a receber algumas informações para ajudá-lo a fazer ajustes posturais. Se estivermos num terreno com inclinação, os nossos tornozelos irão inclinar-se para cima ou para baixo para manter o corpo numa posição vertical, para não cair. Se dermos um passo em frente com a perna esquerda, o próximo passo com a direita seguirá o caminho de menor resistência - o movimento mais fácil para manter o equilíbrio, mas não necessariamente em linha reta. No entanto, se tivermos um objetivo comportamental - andar em linha reta, por exemplo - a visão reduz os ajustes posturais necessários ao mínimo para alcançar o objetivo com eficácia.
Como é que os animais, seja um inseto ou um humano, decidem qual o modelo seguir? “Existe uma certa tensão entre o que o animal está disposto a fazer e o que as propriedades físicas do mundo impõem em termos de controlo postural. A visão distorce o modelo a favor de metas comportamentais. Assim, quando a visão não está disponível, o modelo preferido está relacionado com a postura e o equilíbrio. Esta ideia também se aplica amplamente aos humanos”, afirma Eugenia.
A meta das moscas
Ao discutir o comportamento e as intenções das moscas-da-fruta, uma questão óbvia é levantada: se não conhecemos os objetivos da mosca, como fazer para percebermos se ela está a agir de forma orientada em relação a um objetivo? Eugenia dá todo o crédito a Tomás por isso: “Este é um dos aspectos que considero mais elegante neste artigo! Foi muito complicado de testar, por estarmos a lidar com um sinal interno que é muito difícil de extrair através da observação externa. ”
Para realizar estas experiências, o Tomás utilizou o FlyVRena, um sistema de realidade virtual de última geração. Nas suas próprias palavras, “Imergimos a mosca num mundo de realidade virtual para conseguirmos medir, com alta resolução, como a mosca se move neste ambiente e controlar o que entra na sua retina. Com humanos, isto seria feito com óculos de realidade virtual, mas para a mosca construímos um pequeno espaço com tecnologia de realidade virtual para manipularmos de forma muito precisa tudo o que a mosca vê por baixo de si. As paredes e o teto do espaço são mantidos estáticos e vazios para minimizar o 'ruído' dos estímulos visuais. Com este método, testamos hipóteses, como: ‘a visão é importante para a coordenação do movimento cabeça-corpo?’ ”
Eugenia explica como a equipa testou se a mosca agia de forma orientada para um objetivo ou mais aleatória: “Para isto, o Tomás também encontrou uma forma muito inteligente de o fazer, uma vez que criou uma situação no mundo, de tal forma que a mosca apresenta um comportamento regular, muito estruturado. Podemos assim estar seguros ao supor que qualquer desvio seria não intencional ou não relacionado com o objetivo. Aquecemos as paredes, fazendo com que a mosca andasse sempre numa determinada área do espaço, virando-se ao chegar muito perto de uma das paredes e seguindo uma direção previsível ”. O passo seguinte foi observar como a mosca organizava o movimento do seu corpo em diferentes condições visuais, incluindo a escuridão total.
Aplicando o conhecimento a cérebros maiores
Com estes novos dados, quais os próximos passos? Para responder a essa pergunta, Eugenia acredita que isto é apenas o começo: "O efeito preventivo do feedback visual que observamos sugere fortemente a presença de interações bidirecionais entre os sinais da medula espinhal e os circuitos visuais no cérebro, assim a próxima etapa para nós é compreender esta interação bidirecional em diferentes comportamentos. De um modo mais geral, estes fluxos de informações interconectados entre o corpo e o cérebro não afetam apenas o controlo das correções de movimento, mas também criam percepção e o sentido de identidade. Por exemplo, em certas condições psiquiátricas, como quando um paciente não consegue reconhecer os seus próprios membros, existem estados específicos em que essas interações bidirecionais foram fragmentadas. ”
A palavra final cabe a Tomás, que se prepara para defender a sua tese de doutoramento: “Os próximos passos deste trabalho são a identificação dos circuitos neurais onde convergem estas fontes de informação e a investigação de como estas interagem para guiar o comportamento do animal”.
Journal
Current Biology
Method of Research
Experimental study
Subject of Research
Animals
Article Title
Fast tuning of posture control by visual feedback underlies gaze stabilization in walking Drosophila
Article Publication Date
7-Sep-2021