Novas investigações sobre as principais causas da perda de biodiversidade no mundo lançam um apelo por uma reorganização urgente e profunda da economia global pós-pandemia, para evitar novos danos ao planeta.
O relatório sublinha que as atuais regras comerciais, políticas económicas, encargos da dívida, subsídios e formas de evasão fiscal, bem como o persistente incumprimento dos compromissos de financiamento pelos países ricos, não só prejudicam os esforços pela conservação da biodiversidade, como estão entre os principais fatores que provocam os danos ecológicos.
O estudo, conduzido por investigadores da Universidade de Lancaster, da Universidade da Colúmbia Britânica e da Universidade Duke, demonstra o incumprimento dos compromissos relacionados à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), um importante tratado multilateral assinado com o objetivo de conservar a biodiversidade, utilizá-la de forma sustentável e partilhar equitativamente os seus benefícios.
Os investigadores consideram que a abordagem global para a definição das políticas ligadas à biodiversidade é inadequada as discussões giram em torno das maneiras de trazer a natureza para dentro das regras existentes do jogo económico, em vez de examinar a forma como essas regras criam o problema em primeiro lugar.
O relatório também destaca que os investimentos em projetos de melhoria da natureza fazem pouco para conter o agravamento da crise da biodiversidade porque os fatores económicos que impulsionam a crise continuam a ser ignorados. Os autores advertem que, embora o aumento do financiamento para ações ligadas à biodiversidade seja bem-vindo, os seguintes fatores económicos têm de ser abordados para que tais ações sejam eficazes:
- As normas existentes para regular o comércio e o investimento, cujo efeito é estimular um modelo de desenvolvimento que degrada a biodiversidade
- Um crescimento exponencial no financiamento público e privado das indústrias nocivas à biodiversidade
- As políticas de austeridade e liberalização do comércio, impostas de forma generalizada como condições de acesso aos mecanismos de apoio financeiro
- Os encargos da dívida nos países em desenvolvimento, que esgotam as finanças públicas e tornam impossível, para muitas nações, o investimento na conservação e utilização sustentável
- As desigualdades enraizadas ao nível internacional e nacional, para as quais o desenvolvimento económico nocivo à biodiversidade é apresentado como a única solução
- Subsídios públicos para atividades que prejudicam a biodiversidade, cujo volume excede largamente o investimento internacional em iniciativas para a sua preservação
- Evasão fiscal pelas elites ricas e as grandes empresas, que drenam ainda mais os cofres públicos
Os investigadores mostram que os países mais ricos não estão a cumprir as suas obrigações de financiamento previstas na CDB. Em vez disso, nos quase 30 anos desde o nascimento da CDB em 1992, os signatários do mundo rico só pagaram cerca da metade (58%) do que prometeram, enquanto continuam a promover agendas económicas que aprofundam as causas da perda de biodiversidade.
A Dra. Jessica Dempsey, do Departamento de Geografia da Universidade da Colúmbia Britânica, foi uma das investigadoras principais no estudo. Em suas palavras: "A nossa investigação mostra que, além de serem necessários mais recursos financeiros para conter a crise da biodiversidade, também é preciso repensar de forma mais ampla os mecanismos pelos quais as regras da economia estão a conduzir à sexta extinção. Precisamos olhar com atenção para elementos como a política fiscal e os direitos de propriedade intelectual, e até mesmo ideias inteiras que orientam o funcionamento da economia global tais como aquelas que determinam o que significa para os governos ser 'financeiramente responsáveis', quando a história demonstra a ineficácia da austeridade em produzir bons resultados ambientais".
"Para fazer uma analogia com a atual pandemia, o FMI propôs recentemente pagamentos de solidariedade para o Sul Global" diz Lim Li Ching, da Rede do Terceiro Mundo. "Esta seria também uma boa medida para a biodiversidade, mas precisa de ser acompanhada de profundas mudanças estruturais e o FMI poderia começar por parar de obrigar esses mesmos países a adotarem políticas de austeridade."
Os autores salientam que as desigualdades sociais em matéria de raça, género, classe e casta não só influenciam a forma como os efeitos da perda de biodiversidade são sentidos, mas também conduzem elas próprias à extinção e degradação ecológica, por forçarem injustamente os países em desenvolvimento e as comunidades com poucos recursos financeiros a adotarem estratégias de sobrevivência e desenvolvimento nocivas ao ambiente. Dessa forma, a justiça social e ambiental deve ser um elemento central nos esforços para enfrentar a crise da biodiversidade.
O relatório também se concentra nas dívidas tanto monetárias como ecológicas acumuladas pelo mundo rico às custas dos pobres. Os autores dizem que o pagamento destas dívidas é crucial, mas não pode ser realizado apenas pela concessão de mais financiamento através dos canais existentes também é necessário um novo processo de regulamentação global para criar uma economia mais equitativa.
Os autores de Muito além do défice: situar o financiamento da biodiversidade no contexto da economia global, publicado pela Rede do Terceiro Mundo e pela Universidade da Colúmbia Britânica em maio de 2021, dizem que chegou a hora de agir, num momento em que a COVID-19 acelera o ímpeto para repensar a estrutura e a regulação da economia global.
Num documento de síntese que acompanha o relatório completo, os investigadores apresentam cinco recomendações para modificar os processos económicos globais, de modo a deixarem de contribuir para a destruição da biodiversidade. Assim, apelam aos 196 governos que são Partes na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) para que:
- 1) Eliminem o nexo entre dívida e austeridade, que alimenta o extrativismo e impede a implementação da CDB.
2) Regulamentem as finanças e penalizem as indústrias que provocam danos à biodiversidade e aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais.
3) Assegurem que o financiamento da biodiversidade não impeça a implementação de mudanças transformadoras nem prejudique os objetivos da CDB.
4) Reduzam as desigualdades de riqueza e poder aos níveis nacional e internacional, que impedem a execução de mudanças transformadoras.
5) Atuem para eliminar as desigualdades de classe, casta, raça e género, que estão na base da perda de biodiversidade e impedem a sua conservação e utilização sustentável.
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O Dr. Patrick Bigger, do Centro de Pentland da Universidade de Lancaster, um dos líderes do projeto, afirma: "Estamos a apelar por mudanças urgentes na abordagem, com fortes ações estatais e multilaterais coordenadas para regular e redirecionar o financiamento, de projetos que degradam a biodiversidade para outros que promovam uma recuperação económica benéfica ao ambiente. Para tal, é preciso reforçar as nossas instituições públicas e iniciar reformas profundas para transformar a política e o investimento público." E acrescenta: "O nosso estudo demonstra que o financiamento é frequentemente canalizado para projetos ineficazes, sem efeitos comprovados ou totalmente contraproducentes. Muitos desses projetos baseiam-se no chamado financiamento misto, que acaba por apoiar organizações privadas orientadas pelo lucro, em vez de ajudar diretamente os países com maior biodiversidade a protegerem os seus frágeis ecossistemas e as pessoas que os conservam e deles dependem".
Os autores do artigo são Patrick Bigger e Jens Christiansen, da Universidade de Lancaster, Jessica Dempsey, Adriana DiSilvestro, Audrey Irvine-Broque, Sara Nelson, Fernanda Rojas-Marchini e Andrew Schuldt, da Universidade da Colúmbia Britânica, e Elizabeth Shapiro-Garza, da Universidade Duke.